No itinerário do
Advento, a liturgia nos convida a celebrar a solenidade da Imaculada Conceição
de Maria: a criatura destinada a ser a Mãe do Redentor, sendo preservada
do contágio do pecado original. O Papa Pio IX declarou em sua Carta
Apostólica “Ineffabilis Deus”, de 1854, dizendo que Maria “foi preservada, por
particular graça e privilégio de Deus Todo-Poderoso, em previsão dos méritos de
Jesus Cristo Salvador do gênero humano, imune de toda a mancha de pecado
original”. Tal verdade de fé está contida nas palavras da saudação que lhe
dirigiu o Arcanjo Gabriel: “Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo!”
(Lc 1, 28)
O mistério da Imaculada Conceição de Maria, que hoje celebramos, nos faz
recordar duas verdades fundamentais da nossa fé: antes de tudo, o pecado
original e, depois, a vitória da graça de Cristo sobre ele, vitória que
resplandece de modo sublime em Maria. A existência do que a Igreja chama
"pecado original", é de uma clara evidência. Com efeito, a
experiência do mal é tão consistente que se impõe por si só e suscita em nós a
pergunta: de onde provém? Especialmente para nós a questão é ainda mais
profunda: se Deus, que é bondade absoluta, criou tudo, de onde vem o mal? As
primeiras páginas da Sagrada Escritura respondem exatamente a esta pergunta
fundamental, que interpela todas as gerações humanas, com a narração da criação
e da queda dos progenitores (cf. Gn 1-3). Deus criou tudo para a existência,
criou o ser humano à sua imagem; não criou a morte, mas ela entrou no mundo por
inveja do demônio (cf. Sb 1, 13-14; 2, 23-24), que ao revoltar-se contra Deus,
atraiu para o engano também os homens, induzindo-os à rebelião. É o drama da
liberdade aceita por Deus, prometendo contudo que haverá um filho de mulher que
esmagará a cabeça da antiga serpente (Gn 3, 15).
O relato evangélico deste dia nos leva a uma aldeia da Galileia, chamada
Nazaré, situada ao norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades. Era
considerada pelos judeus como uma terra longínqua e estranha, em permanente
contato com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa,
influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos
mestres judeus de Jerusalém de que “da Galileia não pode vir nada de bom”.
Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história
religiosa judaica e, portanto, de acordo com a mentalidade judaica, à margem
dos caminhos de Deus e da salvação.
Maria, a jovem de Nazaré, é identificada no texto como “uma virgem desposada
com um homem chamado José”. O casamento hebraico considerava o compromisso
matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se
prometiam um ao outro, conhecido como “esponsais”; só numa segunda fase surgia
o compromisso definitivo, que se concretiza com a cerimônia do matrimônio
propriamente dito. Entre os “esponsais” e o rito do matrimônio, passava um
tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar
atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não
viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um caráter
estável, de tal forma que, se surgisse um filho, este era considerado filho
legítimo de ambos.
A Lei de Moisés considerava a infidelidade da prometida como uma ofensa
semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27). E a união entre as
partes só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. Maria e José
estavam, portanto, na situação de “prometidos”, uma vez que ainda não tinham
celebrado o matrimônio, mas já tinham celebrado os “esponsais”.
O evangelho também nos apresenta o diálogo entre Maria e o anjo, que tem início
com a saudação do anjo, que começa dizendo “Ave”, um termo que tem a sua origem
no grego “kaire”, que também pode ser traduzido por “Salve”; na verdade é mais
do que uma saudação: é o eco dos anúncios de salvação à “filha de Sião”, uma
figura frágil que personifica o Povo de Israel, em cuja fraqueza se apresenta e
representa essa salvação oferecida por Deus, a ser testemunhada diante dos
outros povos (cf. 2Rs 19,21-28; Is 1,8;12,6; Jr 4,31; Sf 3,14-17).
A expressão “cheia de graça” significa que Maria é objeto da predileção e do
amor de Deus. A outra expressão “o Senhor está contigo” aparece, com
frequência, relacionada aos relatos de vocação no Antigo Testamento (cf. Ex
3,12 - vocação de Moisés; Jz 6,12 - vocação de Gedeão; Jr 1,8.19 - vocação de
Jeremias) e serve para assegurar ao “chamado” a assistência de Deus na missão
que lhe é pedida. Estamos, portanto, diante do “relato de vocação” de Maria: a
visita do anjo destina-se a apresentar à jovem de Nazaré uma proposta de Deus.
Essa proposta vai exigir uma resposta clara de Maria.
Através do Anjo Gabriel Deus convida Maria a ser a mãe de um filho especial e
apenas diz, em primeiro lugar, que ele se chamará Jesus, cujo significado é
“Deus salva”. O Anjo Gabriel o apresenta como o “Filho do Altíssimo”, que
herdará “o trono de seu pai David” e cujo reinado “não terá fim”. Essas
palavras do Anjo nos faz dirigir o nosso olhar ao Segundo Livro de Samuel (cf.
2Sm 7) e à promessa feita por Deus ao rei David através das palavras do profeta
Natã. Esse Filho anunciado pelo Anjo Gabriel a Maria é descrito nos mesmos
termos em que a teologia de Israel descrevia o “Messias”. O que é proposto a
Maria é, pois, que ela aceite ser a mãe desse “Messias” que Israel esperava, o
enviado por Deus ao seu Povo para lhe oferecer a vida e a salvação.
A resposta de Maria começa com uma objeção, presente nos relatos de vocação do
Antigo Testamento (cf. Ex 3,11; 6,30; Is 6,5; Jr 1,6). Diante dessa objeção, o
anjo garante a Maria que o Espírito Santo virá sobre ela e a cobrirá com a sua
sombra. Este Espírito é o mesmo que foi derramado sobre os juízes (Oteniel –
cf. Jz 3,10; Gedeão – cf. Jz 6,34; Jefté – cf. Jz 11,29; Sansão – cf. Jz 14,6),
sobre os reis (Saul – cf. 1 Sm 11,6; David – cf. 1Sm 16,13), sobre os profetas
(cf. Ex 15,20; os anciãos de Israel – cf. Nm 11,25-26; Ezequiel – cf. Ez 2,1;
3,12), a fim de que eles pudessem ser uma presença eficaz da salvação de Deus
no mundo. A “sombra” ou “nuvem” nos leva também, à “coluna de nuvem” (cf. Ex
13,21) que acompanhava a caminhada do Povo de Deus em marcha pelo deserto,
indicando o caminho para a Terra Prometida da liberdade e da vida nova. A questão
é a seguinte: apesar da fragilidade de Maria, Deus vai, através dela, fazer-se
presente no mundo para oferecer a salvação a todos os homens.
O relato termina com a resposta final de Maria: “Eis a serva do Senhor; faça-se
em mim segundo a tua palavra”. Afirmar-se como “serva” significa, mais do que
humildade, reconhecer ser um eleito de Deus e aceitar essa eleição, com tudo o
que ela implica, pois, no Antigo Testamento, ser “servo do Senhor” é um título
de glória, reservado àqueles que Deus escolheu, que ele reservou para o seu
serviço e que ele enviou ao mundo com uma missão. Essa designação aparece, por
exemplo, no livro do profeta Isaías (cf. Is 42,1; 49,3; 50,10; 52,13; 53,2.11).
Desta forma, Maria reconhece que Deus a escolheu, aceita com disponibilidade
essa escolha e manifesta a sua disposição de cumprir, com fidelidade, o projeto
de Deus.
Através destes relatos temos o exemplo de Maria. Confrontada com os planos de
Deus, ela responde com um “sim” total e incondicional. Naturalmente, ela tinha
o seu programa de vida e os seus projetos pessoais; mas, diante do apelo de
Deus, esses projetos pessoais passaram naturalmente e sem dramas, a um plano
secundário. Tudo nos leva a indicar que Maria de Nazaré foi, certamente, uma
pessoa de oração e de fé, que fez a experiência do encontro com Deus e aprendeu
a confiar totalmente nele.
E a iconografia da Imaculada pode ser também motivo fecundo de meditação. As
alusões bíblicas e teológicas são uma fonte de catequese de longo alcance. O
dragão pisado pela Virgem lembra antes de mais o mítico Leviatã (Is 27,1; Sl
74,14), monstro marinho que na Bíblia evoca a resistência das águas primordiais
ao poder criador e redentor de Deus. Na mesma tradição, esse triunfo de Deus
sobre a antiga serpente tem concretização histórica na anunciada vitória da
descendência de Eva: “Ela esmagar-te-á a cabeça, ao tentares mordê-la no
calcanhar” (Gn 3,9-15). Ecos desse combate cósmico percorrem as visões do
Apocalipse e estão presentes no sinal aparecido no céu de “uma mulher revestida
de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés e coroada de doze estrelas” (Ap
12,1-6.15-17).
Para a Tradição cristã, esses
símbolos enraízam na história. Assim, os Padres da Igreja não cessam de
apelidar a Mãe de Jesus de Nova Eva, Filha de Sião, Aquela que, na sua
plenitude de graça, realiza o que em Eva estava prefigurado. Não por mérito
próprio, mas como a mais perfeitamente redimida, por isso, pode ser chamada de
a “cheia de graça”. Por seu intermédio, Deus se fez carne, para habitar entre
nós.
Lembremos ainda que na cruz, Jesus confiou Maria a João e a todos os discípulos
(cf. Jo 19, 27), e desde então ela se converteu para toda a humanidade em Mãe e
a ela nos confiou como seus filhos. É a nova Eva, esposa do novo Adão,
destinada a ser mãe de todos os remidos. Por isso, animados pela filial
confiança, possamos dirigir a ela a nossa oração fervorosa, para que interceda
junto de Deus em favor de seus filhos, a fim de que nos ajude a celebrar com fé
o Natal do Senhor, já próximo, e que possa nos indicar o caminho que conduz à
paz, o caminho em direção ao reino de seu filho Jesus; que ela nos guie na
vivência de cada dia, agora e na hora de nossa morte.
D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB.