Dom Helder Câmara, um Servo de Deus 
temp_titledom_helder_24072015105057O mais novo candidato brasileiro aos altares, Dom Helder Pessoa Câmara, que teve seu processo diocesano aberto no dia 3 de maio pela arquidiocese pernambucana de Olinda e Recife, foi por sete vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz e teve centenas de condecorações por suas atividades, que promoveram, entre muitas outras coisas, a educação e a igualdade social.
No Rio de Janeiro, durante 28 anos que esteve como bispo auxiliar da arquidiocese, participou ativamente da Ação Católica Brasileira (ACB), um movimento fundado pelo Cardeal Sebastião Leme da Silveira Cintra, em 1935, com o objetivo de formar leigos para colaborar com a missão da Igreja de salvar as almas pela cristianização dos indivíduos, da família e da sociedade.

Desse trabalho surgiu a base para a criação do Banco da Providência e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), conforme contou Marina Araujo, de 92 anos, que dirige até hoje o banco, o qual ajudou Dom Helder a fundar, há 56 anos. O fato de a Ação Católica ter uma estrutura hierárquica bem definida e ajudar a criar diretrizes para a ação da Igreja no Brasil antes da década de 1950, facilitou a fundação da CNBB, através da percepção da necessidade de um organismo que assumisse o direcionamento da Igreja no país.
Em uma reunião no Palácio São Joaquim, na Glória, que até hoje abriga os arcebispos, foi fundada a CNBB, em outubro de 1952. Dom Helder, que escreveu a ata daquela reunião, foi incumbido de assumir a secretaria geral, cargo no qual permaneceu por 12 anos.
Este cargo permitiu que ele organizasse o 36º Congresso Eucarístico Internacional, ocorrido no Rio de Janeiro, em 1955.
“O Congresso Eucarístico foi um evento de grandes proporções, e foi ele quem organizou. Quando estava em pleno sucesso do congresso, o Cardeal Pierre-Marie Gerlier, de Lyon, na França, apontou o escândalo que era a pobreza do Rio de Janeiro se comparado à riqueza. Disse ao então padre Helder que se ele tinha capacidade para fazer uma obra como a do Congresso Eucarístico, poderia resolver o problema da pobreza. O padre Helder foi tocado pelo Cardeal Gerlier”, contou Marina, que até hoje chama Dom Helder de padre, um costume que conservou do tempo em que conviveram.
Banco da Providência
O Banco da Providência foi um dos frutos do Congresso Eucarístico ocorrido naquele ano de 1955. Dom Helder, tocado pelas palavras do cardeal francês, fez uma grande convocação para a criação do banco. Chamou pessoas que atuavam na Ação Católica e as que contribuíram para a boa organização do congresso. “Primeiro”, contou Marina, “formou-se uma quermesse, e depois o banco”. Após um tempo foi criada a Feira da Providência, evento anual que proporciona subsídios financeiros para a manutenção dos projetos do Banco da Providência.
David Azoubel, de 82 anos, foi um desses convocados. Hoje aposentado, ele era seminarista e tinha 17 anos quando o congresso ocorreu. Não se formou padre, mas dedicou sua vida quase toda – 60 anos dela – ao serviço à Igreja. Dentre os santos e quase santos que conheceu ao longo desse período, está Dom Helder, de quem foi amigo. Tanto que até hoje ele é voluntário no Banco da Providência.
“Costumo dizer que tenho mil e uma utilidades porque o que me pedem, estou fazendo”, brincou ele.
Os primeiros atendimentos do Banco da Providência foram feitos no Palácio São Joaquim. Ele era responsável pela “colocação”, ou seja, era quem buscava vagas de empregos para as pessoas.
“Quando Dom Helder ia às inaugurações de prédios e outros eventos, as pessoas iam até ele pedindo emprego, e ele escrevia um bilhete para mim: ‘Por favor, veja o que é possível fazer por ele’. Eu era autorizado a me apresentar às empresas como ‘auxiliar de Dom Helder’. Era emprego na certa. Aconteceram muitos milagres!”, contou.
Ele se emociona ao falar de Dom Helder, e lembrou dos momentos que presenciou ao longo de sua história: “Toda sexta-feira, Dom Helder celebrava a missa no Palácio São Joaquim – que ele não chamava de palácio, apenas de São Joaquim. Naquela época ainda se faziam as celebrações de costas para o povo. Ele chorava muito na Santa Missa! Só quem assistia é que sentia nele a presença real de Jesus Cristo no altar. Ele falava com Jesus e chorava. Era impressionante! E quando ele dava a Sagrada Comunhão, ele apertava a âmbula no peito, do lado do coração, com toda a força”, frisou David, que é afilhado de Alice Vidal de Oliveira, mãe de Odette Vidal de Oliveira, outra candidata à santidade.
Para David, o mais importante foi conviver com pessoas que o fizeram crescer como ser humano.
“A beleza desse grupo era o que cada um trazia consigo. Eu sou feliz porque convivi com gente que sabia ser gente. Com gente que respeitava o outro, assim como Dom Helder sempre tentou passar para nós”, afirmou.
Para Adair Leonardo Rocha, teólogo e bacharel em filosofia, representante da sociedade civil na Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, que atualmente dirige pesquisas sobre cultura, comunicação, política, favela e cidadania, Dom Helder foi uma pessoa com uma percepção da realidade que do ponto de vista religioso certamente poderia ser entendido como profética, e do ponto de vista político, antecipava de longe o que seria um processo democrático, socialista:
“Quando falamos do banco, a própria expressão ‘providência’ é muito interessante porque lembra o que foi a primeira favela do Rio, o Morro da Providência, e como um banco da providência nos remete a ‘o que se providencia? O que se pode fazer na situação calamitosa em que as pessoas estão vivendo? Que possibilidades de mudança são essas?’ Dom Helder foi uma das pessoas que transformaram a questão da fome e da miséria em algo que não se resolvia apenas com a esmola. Na concepção dele, era preciso haver a assistência, mas a assistência não se reduzia a assistencialismo. Quem está com fome não pode esperar a sociedade mudar, precisa ter a assistência mais imediata. E ele sempre foi profético nesse ponto”, apontou. Por isso e por outras ações concretizadas, foi indicado sete vezes ao Prêmio Nobel da Paz.

Um homem à frente de seu tempo
Depois de um incêndio ocorrido no morro da Praia do Pinto, em 1969, ao invés de ir para os diversos locais criados para as remoções, a população foi absorvida pela Cruzada de São Sebastião, um conjunto habitacional no Leblon, que simbolicamente continuou no mesmo território onde era a antiga comunidade, conforme contou Adair Leonardo Rocha.
“Essa foi uma ação profética de Dom Helder Câmara. Pelo seguinte motivo, e que nos coloca uma questão: que tipo de favela era essa que podia permanecer em um local tão cobiçado pela especulação imobiliária como o Leblon? A favela como ela estava, espalhada na Praia do Pinto, trazia um risco muito grande. Além de pegar os terrenos mais valiosos que havia por ali, também trazia para o convívio de uma população mais enriquecida a população empobrecida, que tinha outras formas de se relacionar, outras tradições culturais, outras formas de vida. Então, a Cruzada, por ser formada de prédios, cria uma identificação com as próprias construções do espaço. E estrategicamente se mantém uma população mais próxima do local onde ela vai trabalhar”, explicou Adair.
Segundo o pesquisador, o Banco da Providência e a Cruzada não só foram projetos positivos como anteciparam questões políticas em curso que demoram a serem resolvidas, e acabaram criando saídas para problemas urbanos permanentes.
“E continuam até hoje questionando a forma como a cidade estava organizada naquele período. Aquilo que simbolicamente era a favela da Praia do Pinto representa as favelas que cada vez crescem mais no Rio e, como do ponto de vista da política urbana, isso era e será tratado para que todos possam ter os direitos respeitados”, questionou.
Vida e história
Comprometido com a causa dos pobres e das minorias, Dom Helder ficou marcado pelo seu altruísmo e pelo jeito como lidava com os pobres e excluídos, que era a forma proposta pelo Capítulo 4 do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, que trata da opção preferencial pelos pobres: “O princípio da destinação universal dos bens requer que se cuide com particular solicitude dos pobres, daqueles que se acham em posição de marginalidade e, em todo caso, das pessoas cujas condições de vida lhes impedem um crescimento adequado.”
Durante os 28 anos em que esteve bispo auxiliar de Dom Jaime de Barros Câmara na Arquidiocese do Rio de Janeiro, de 1936 a 1964, se tornou símbolo da luta contra a pobreza no Brasil.
Dom Helder faleceu no dia 28 de agosto de 1999, em Recife, aos 90 anos. Nascido em Fortaleza, no dia 7 de fevereiro de 1909, em uma família pobre, de 13 filhos, dos quais ele era o décimo primeiro, e tendo perdido cinco irmãos por causa de uma epidemia de gripe devido às condições precárias de saúde em que vivia. Conhecia bem o que era ser pobre.
Aos 22 anos foi ordenado padre, em 15 de agosto de 1931, com uma licença extraordinária da Santa Sé porque não tinha ainda a idade mínima necessária para a ordenação, que era de 24 anos. No dia 3 de março de 1952, foi ordenado bispo auxiliar do Rio de Janeiro.
Exerceu ação de destaque no Concílio Ecumênico Vaticano II, criando e assinando o Pacto das Catacumbas, que propõe aos bispos, presbíteros e diáconos da Igreja a renúncia total a qualquer tipo de riqueza e luxo e entrega total ao serviço aos pobres.
Em março de 1964, foi nomeado arcebispo de Olinda e Recife. Ocupou o cargo de bispo até o dia 2 de abril de 1985, quando renunciou, tornando-se bispo emérito. Nos anos 90, inaugurou, com o auxílio de várias organizações filantrópicas, na Fundação Joaquim Nabuco, a campanha Ano 2000 Sem Miséria.
Marina Araujo, atual diretora do Banco da Providência, que foi amiga de Dom Helder, lembra que o elogio que ele mais gostou de receber veio de uma criança que disse que ele era “feio como um E.T., mas tão bonzinho quanto ele”, o que para ela comprova a simplicidade da pessoa dele, com quem, ela afirma, “podia-se fazer brincadeiras ou ter uma conversa séria e profunda que ele saberia falar de ambas as coisas”. Mas a marca dele era mesmo o amor pelos pobres.
“Onde ele fosse tinha filas de pobres. Por isso surgiu a ideia de fazer um trabalho organizado de atendimento aos menos favorecidos”, explicou ela, falando sobre o Banco da Providência. “Ele podia ter acabado de ganhar um dinheirinho, e dava a quem pedisse e precisasse. Muitas vezes deu inclusive sem saber o quanto estava dando. Quando questionado, ele dizia: ‘Não era meu’, ou então ‘Ué, não era para dar?’”, contou ela.
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